Portugal: Como Costa vai engolir a esquerda parlamentar

Por Grazia Tanta

Na Grécia surgiu um Syriza que anulou o desacreditado Pasok, adoptando a agenda deste último. Em Portugal, foi o PS que se preveniu e prepara a sua sobrevivência cooptando a esquerda parlamentar. Dois caminhos diferentes para uma normalização neoliberal em tempos de crise duradoura

Contra todas as expectativas (nossas também[1]), gerou-se um governo PS, apesar do medíocre resultado eleitoral de António Costa[2], só possível com o apoio, o não desapoio ou ainda, a neutralidade da “esquerda” BE/PC, para além do berloque “Os Verdes”.

Uma “esquerda radical”?

Cabe aqui uma referência à campanha de desinformação do duo dos ressabiados Passos/Portas secundados pelo imputado burlão Marco Antonio Costa[3]. A acusação de “esquerda radical” ao BE/PC é de todo descabida porque dirigida a formações sociais-democratas fora do tempo, sem críticas ao capitalismo, que cultiva hierarquias e autoridade, crentes no keynesianismo, ou mesmo num neoliberalismo reformado, de “face humana”, na democracia de mercado, com eleições que reciclam no poder os mesmos do costume. Digamos que são conservadores ma non troppo.

A acusação de “esquerda radical” é uma atualização pela direita trauliteira e pós-fascista actual, dos medos incutidos em 1975, num povo semi-analfabeto e beato, deliberadamente assustado com a ideia de que os comunistas “comiam criancinhas”; hoje, os portugueses não são semi-analfabetos mas, despolitizados o suficiente para não reagirem a tão grosseira propaganda. Nem a mansa imprensa, naturalmente, reage a tamanha falsificação.

Aliás, essa falta de radicalidade da dita esquerda é bem clara pelo facto de, após decénios de prática favorável ao capitalismo por parte do PS, continuarem a considerá-lo como uma força política de esquerda[4].

Há um começo histórico para essa atitude que remonta ao período que se seguiu às primeiras eleições, em 1975. O PC tinha então enorme influência no poder e procurava adiar as eleições sine die; aquelas acabaram por se realizar, deram um resultado decepcionante para o PC e os seus apêndices (MDP e FSP) e um larga vantagem ao PS. Como não podia negar essa realidade, o PC avançou com a ideia de que havia uma maioria (PS+PC) favorável ao socialismo (?), uma maioria de esquerda, no que foi mais ou menos seguido, por outros grupos que se alimentavam da mitologia “socialista”. Mesmo depois do golpe de 25 de novembro, essa ideia da maioria de esquerda manteve-se, numa atitude messiânica que foi alicerçando esse mito conservador de que o PS é progressista por mais que os seus comportamentos, em regra de caráter anti-social, tenham invalidado mudanças substantivas a favor da multidão. Como Costa irá provar.

Isso teve desde sempre o mal disfarçado intuito, hoje concretizado, de estabelecer uma osmose, entre a direita e a esquerda do sistema partidário, a manutenção do actual regime de capitalismo low cost e de uma “democracia” na qual à esmagadora maioria está vedado o acesso a responsabilidades políticas; e ainda, que permita o regular acesso ao pote e às mordomias, pelos caciques dessa esquerda. Nessa continuada política passaram decénios a branquear a atuação da direita, posicionando-se ao lado de uma das alas do partido-estado, contra a outra, como um pêndulo; ora estiveram ao lado de Passos para derrubar Sócrates, como de Costa para afastar Passos, com o programa a seguir dentro de momentos.

“Onde está a esquerda? Ao fundo, à direita”

(frase criada no âmbito do movimento 15 M, nas Puertas del Sol, Madrid)

Entrismo é ingenuidade ou oportunismo?

Uma das velhas práticas do vetusto trotsko-estalinismo é a crença nas virtudes do entrismo; isto é da penetração em instituições estatais para influenciarem burocratas, corruptos ou raros ingénuos a inserirem-se nas suas lógicas, procurando apossar-se, com trabalho de sapador, desse regulador do capitalismo chamado Estado. Isso, em regra, não acontece; pelo contrário, são os membros dos grupos trotsko-estalinistas que, vendo poucos resultados nesses esforços de doutrinação, se passam para o lado dos burocratas clássicos e da corrupção. Não é fácil encontrar figuras que tenham saído de partidos de direita para outros da chamada esquerda mas a inversa, apresenta dezenas ou centenas de casos; a doçura do mel que escorre do pote é decisiva nessas decisões. Esse processo individual poderá mesmo prosseguir de forma grupal, mesmo que se mantenham as siglas e as bandeiras.

Uma nova nobreza

Agora que Costa tomou posse com o seu governo, não deixa de ser curioso verificar a existência de uma nova nobreza, onde filhos herdam ou partilham presenças no governo com os seus pais, ou membros de um mesmo casal se encontram na mesa do orçamento, revelando um certo grau de endogamia. Numa época em que se tornou banal, o velho “sangue azul” se misturar com fluidos plebeus, eis que surge uma nova classe de ungidos com gerações sucessivas em funções governativas, de beneficiários de rendas e abastecedores de rendas a empresas que, certamente manifestarão a sua gratidão. A endogamia aumenta a probabilidade de malformações, como é sabido.

Cenário A – A esquerda parlamentar apoia estoicamente Costa

 

Costa irá lastimar-se da herança deixada por Passos que acusará de todos os males estruturais construidos pelo partido-estado (PS/PSD) nos últimos 40 anos, como da chuva ou do sol que fizer. Os ressabiados Passos e Portas irão protestar, contestar Costa no areópago de S. Bento, com a raiva a gotejar dos queixos; e, para evitar a óbvia obstrução da direita trauliteira, a chamada esquerda vai suportando tudo o que Costa propuzer, bom, mau ou assim-assim.

Com essa postura da tal esquerda, Costa, matreiro como é, pode esticar a corda, com propostas lesivas para a plebe pois a esquerda parlamentar não quererá, com os seus votos ou abstenções colocar-se do mesmo lado da barricada com a direita trauliteira; e menos ainda, inviabilizar a continuidade de Costa, alinhando em moções de censura que inevitavelmente surgirão lá para maio, arrumada a questão das presidenciais e no rescaldo do congresso do PSD, onde Passos, provavelmente será dispensado. A esquerda do sistema, nesse contexto, jamais quererá repetir o erro político de ter apeado Sócrates, de braço dado com a direita trauliteira, quando imaginaram nas manifestações de 12 de março de 2011 um pulsar revolucionário em terras lusitanas.

Em troca, Costa apoiará a tal esquerda em propostas sobre a igualdade de géneros, dos direitos na identidade de género e na expressão da sexualidade, sobre a IVG, ou outras, desde que tenham pouco impacto nas contas públicas e portanto, irrelevantes para os economicistas do Eurogrupo ou do BCE.

Se a conjuntura se mantiver sem grandes agravamentos e a propaganda continuar a formatar os tugas, como é habitual, o governo até pode chegar ao fim do ciclo quadrienal. Nas eleições que então se realizarem Costa auto-elogiará o seu desempenho e estará patente a sua maestria na domesticação da dita esquerda. Esta, já hoje pouco dada a uma real contestação terá pela frente, a zanga dos descontentes que deixarão de apoiar o BE e a indiferença dos conformados ou satisfeitos com a atuação do governo, que irão apoiar a continuidade de Costa, deixando Catarina a chorar com uns dez deputados à sua volta. Quanto ao PC entendemos que chegou ao limite máximo da sua influência eleitoral, se se tiver em conta os resultados que vem apresentando desde 2005; para mais, a CGTP tem vindo a perder influência e não a ganhá-la junto de trabalhadores mais jovens, precários, não sindicalizados e despolitizados.

Em suma, nesse cenário, Costa, terá então conseguido algo semelhante ao que o Syriza levou a cabo na Grécia; percorrendo um mesmo caminho mas em direção oposta. O Syriza, vindo da esquerda, secou o partido socialista grego (Pasok), incorporando os seus apoiantes e substituindo-o nas suas funções governamentais. Em Portugal tudo indica que é o PS que também cumprirá as instruções do Eurogrupo e do BCE, refrescando-se com a domesticação de uma esquerda já bastante dócil e ideologicamente pobre. Para a multidão dos residentes, acossada pelo desemprego, pela austeridade e pelos cortes, a diferença entre os dois processos políticos, no final, traz o mesmo resultado.

Dentro desta hipótese, pode ainda congeminar-se que numas eleições em 2019, Costa se mostre agradecido e magnânimo integrando a chamada esquerda numa ampla coligação, uma vez que, com com a passagem do tempo já ninguém se atreveria a designar como radicais aqueles partidos. Provavelmente haveria lágrimas de comoção nas almas que suspiram, há décadas, pela unidade da esquerda, mesmo que nunca tenham percebido o que é uma esquerda[5] ; ou que, com a idade, já se tenham… esquecido do que isso é.

Ainda nessa linha, a quatro anos de distância, se Costa puder apresentar-se como construtor da estabilidade política, mesmo com uma realidade económica pouco reconfortante – com culpas facilmente imputáveis à conjuntura internacional, ao Médio Oriente, a algum tombo nas bolsas e a crises no chamado “projeto europeu” cujos contornos são particularmente difusos – Costa diziamos, surgirá como um vencedor. E Brecht já cá não está para recordar que Napoleão conquistou o Egipto e que não estava sozinho pois tinha cozinheiros ao seu serviço. Se alguém alguma vez soube o nome desses cozinheiros, a verdade é que foram esquecidos, como poderá acontecer a Catarina e Jerónimo quando Costa enumerar os seus feitos.

Por outro lado, a proximidade e a atuação concertada entre Costa e a esquerda parlamentar, para mais se alargada a quatro anos, facilitará transições oportunísticas de quadros mais jovens, qualificados ou ambiciosos no seio da esquerda, para as hostes do PS; este estará, naturalmente, aberto a isso, para dar demonstrações de carinho e recompensa que incentivem a transferência dos mais dotados. Ou não estará já hoje o PS bem recheado de gente vinda da esquerda dos anos 70, bem mais radical que a actual? Sampaio, Ferro, Vieira da Silva, Santos Silva, Pina Moura e ainda Vital Moreira, José Luís Judas, Zita Seabra e os falecidos Barros Moura e João Amaral são exemplos bem conhecidos.

Neste cenário não divisamos um futuro risonho para esquerda parlamentar.

Cenário B – Uma ruptura entre Costa e a esquerda do sistema partidário

Muita gente aponta para isso, sobretudo os que ainda vêem no binómio BE/PC uma “esquerda radical”, como os trauliteiros gostam de lhe chamar. Cremos que isso só acontecerá se Costa, obrigado pela UE, a acentuar a austeridade a tal ponto que obrigue a esquerda do sistema a demarcar-se do governo para evitar o seu total descrédito e procurar capitalizar o descontentamento com alguns ganhos eleitorais que, convenhamos, nunca serão comparáveis aos obtidos pelo Syriza na Grécia. Na UE, por seu turno, não parece haver muito preocupação com a presença do BE/PC no suporte ao governo Costa.

Fora dessa hipótese extrema, entendemos ser suicídio político a dita esquerda abrir caminho ou apoiar a direita trauliteira numa atitude de derrube de Costa e do seu governo; nem sequer têm a possibilidade de uma abstenção a moções de censura vindas da direita par(a)lamentar (esta tem 107 mandarins contra 86 do PS), da mesma forma que os dois partidos da esquerda têm de se juntar para não deixarem cair Costa (só os seus 36 deputados com os 86 do PS podem derrotar as investidas dos trauliteiros de Passos/Portas, embora matematicamente, num cenário surrealista, o PS com o BE, os dois deputados dos Verdes e o homem do PAN, possam dispensar os eleitos pelo PC para segurar Costa no poleiro).

Costa, anos atrás, foi hábil e suficiente para anular o BE como força eleitoral e política na capital enquanto o PC se apagava autonomamente no cenário autárquico de Lisboa. E vai conduzindo um processo semelhante agora, para o governo nacional, isolando Francisco Assis e as suas teses trauliteiras.

Se Costa e os seus próximos mantiverem um posicionamento dialogante com a tal esquerda, o binómio BE/PC ou, um daqueles partidos isoladamente, se decidirem a apear o recém-nomeado primeiro-ministro, incorrem com todos os ónus da defenestração de Costa pelos seus pares e o PS ficaria vacinado para voltar a qualquer plataforma de entendimento com a esquerda do sistema, dando razão ao tosco Francisco Assis. Os amantes da estabilidade política, tendo em primeiro plano, os banqueiros, os chamados empresários do regime, acampados em entidades tenebrosas como a CEP do Saraiva, a CIP, o Ferra(bra)z da Costa e outros pouco recomendáveis, como os argutos economicistas que ainda se dignam falar com o apodrecido Cavaco, ensaiariam afinada gritaria para reconduzir o PSD, com ou sem a prótese Portas, ao poder. O que não seria um cenário grandioso para a esquerda parlamentar que iniciasse esse processo.

– – –

Destes cenários sairá uma muito provável maior domesticação da chamada esquerda portuguesa, entrelaçada em concubinato no seu todo ou parcelarmente com o PS, tal como vai acontecendo com o CDS cuja existência depende da utilidade que vá tendo para o PSD, reforçando-se assim a bipolarização típica dos sistemas políticos europeus, constituidos, informalmente num partido-estado, único, avassalador, que só não será totalitário porque as sociedades disciplinares passaram de moda, substituidas pelo muito mais subtil controlo biopolítico.

Este e outros textos em:

http://grazia-tanta.blogspot.com/

http://www.slideshare.net/durgarrai/documents

https://pt.scribd.com/uploads

[1]  http://grazia-tanta.blogspot.pt/2015/10/depois-da-rohttps://kaosenlared.net/wp-content/uploads/2022/01/69751e39686af408b0a05.jpg-eleitoral-o-programa.html

[2]  http://grazia-tanta.blogspot.pt/2015/10/sobrevoando-40-anos-de-eleicoes-em.html

http://grazia-tanta.blogspot.pt/2015/11/o-teatro-eleitoral-em-portugal-200515_5.html

[3]  http://expresso.sapo.pt/politica/2015-06-25-Marco-Antonio-Costa-vai-ter-de-ir-a-Contas

[4]  http://www.slideshare.net/durgarrai/esta-esquerda-a-tranquilidade-da-direita

[5]   http://grazia-tanta.blogspot.pt/2014/10/o-que-e-uma-esquerda-pilares-para-sua.html

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